Laicidade e espiritualidade

“Mas, o Estado é Laico!”. Os que utilizam esta frase, quase sempre, pretendem desconsiderar qualquer tipo de argumentação considerada inoportuna ou ameaçadora à sua concepção de mundo secularizada. Estariam eles corretos?

6
abril, 2021

Christian de Britto – Professor da FATEV

Quantas vezes, você como cristão, teve sua argumentação refutada pela expressão: “Mas, o Estado é Laico!”? Esta expressão é comumente ouvida, nos corredores das universidades, nos debates políticos televisionados, nas situações mais inusitadas. Os que utilizam esta frase, quase sempre, pretendem desconsiderar qualquer tipo de argumentação considerada inoportuna ou ameaçadora à sua concepção de mundo secularizada. Estariam eles corretos?

Em busca de uma ponderação apropriada, termos como secularismo, cidadania religiosa e laicidade e precisam ser definidos.

 

 Secularização

Originalmente, o termo saeculum se define como o “período entre um evento e o ponto em que todos que o presenciaram estão vivos”, ou seja, trata-se de uma geração, de uma era; refere-se, portanto, às atividades terrenas cotidianas. Já o termo secularismo envolve a concepção de esfera pública como necessariamente isenta de crenças religiosas. Tal concepção remonta ao iluminismo, com sua noção de superioridade social da ciência. Dentro desta percepção, a religião é vista como obscurantismo, como se percebe na conhecida frase do sociólogo alemão Max Weber:

“não há, absolutamente, nenhuma religião ‘coerente’, funcionando como uma força vital que não é compelida, em algum ponto, a exigir o sacrifício do intelecto” (WEBER, 1974).

Embora esta proposição seja comumente aceita – inclusive entre os que se valem do argumento de que o Estado é laico – quando lhe convém, ela não se firma na realidade, se Weber tivesse assistido às famosas aulas de seu contemporâneo Abraham Kuyper sobre o calvinismo (KUYPER, 2002), ou ainda tivesse visitado a Universidade Livre de Amsterdam – também fundada por ele, talvez reformulasse sua sociologia da religião.

 

Cidadania

No contexto da secularização, surge a luta histórica pela cidadania que tem como pano de fundo a Revolução Francesa em 1789 e o desenvolvimento da ideia de Estado-Nação,  acompanhada de um forte movimento anticlerical e antirreligioso. Assim, A longa, e não hegemônica, história da cidadania começa com a concessão de direitos aos cidadãos de modo a participarem do Estado. A seu tempo, esta cidadania cívica e política passa a abranger uma cidadania social, marcada pela conquista de direitos sociais trabalhistas, de segurança social,  de acesso à saúde, educação, habitação e aposentadoria. Atualmente, surgem novos movimentos que defendem um alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e sociedade civil, criando mecanismos no qual a esfera política do pessoal procura expressar-se em estratégias de cidadania, é o que nos mostra, por exemplo, a atual agenda do movimento outrora conhecido como LGBT.

Para o sociólogo português Boaventura de Souza Santos:

A politização do social, do cultural e, mesmo, do pessoal abre um campo imenso para o exercício da cidadania e revela, no mesmo passo, as limitações da cidadania de extração liberal, inclusive da cidadania social, circunscrita ao marco do Estado e do político por ele constituído. (DE SOUSA SANTOS, 2014)

Considerando, então, o contexto atual, parece não fazer sentido suprimir a espiritualidade como se fosse um componente estranho ao processo de construção da cidadania. Mas, talvez por nossa omissão como cristãos na esfera pública, ainda ouvimos a frase que insiste em tentar nos calar: “Mas, o Estado é Laico!”. Estariam eles corretos?

 

Laicidade

Afinal de contas o que é laicidade?  Segundo a pesquisadora canadense Élisabeth Garant, é preciso enfatizar o que pode ser chamado de “o mito do modelo único de laicidade” (GARANT, 2013). Isto mesmo, a secularização definitivamente não é um fenômeno que ocorre do mesmo modo em todas as sociedades e em todas as épocas, tão pouco a espiritualidade é um fenômeno que deixa de estar presente em todas as sociedades. “Existem, portanto, múltiplas modalidades de afirmação secular e o desenvolvimento da neutralidade em relação ao fato religioso.” – afirma a pesquisadora, que elenca pelo menos seis tipos de laicidade:

Secularismo separatista: que cria uma divisão entre espaços públicos e privados, relegando a liberdade de consciência e religião ao domínio privado. Neste caso, a pessoa que expressa sua afiliação religiosa na esfera pública é vista como quem quer impor suas convicções sobre os outros.

Secularismo anticlerical:  que estende a exclusão também à esfera individual. Neste caso, a religião passa a não ser aceita de nenhuma forma.

Secularismo autoritário: Entende o Estado não apenas como regulador da atuação da religião apenas no espaço privado, mas também como definidor do que é aceitável ou não como manifestação religiosa, controlando símbolos

Estes modelos,  muitas vezes se valem de posicionamentos não democráticos com vista à imposição de seus preceitos. Muitas vezes são fruto de sociedades ressentidas com anteriores dominações religiosas. Há ainda:

– Secularismo da fé cívica: coloca em concorrência os valores que são caros tanto para as tradições religiosas como para a sociedade política. O que contribui para esta última é aceito, do contrário reprimido em favor do que é “politicamente correto”.

– Reconhecimento Secular: reconhece o direito de todos e valoriza a autonomia dos indivíduos limitando-se ao respeito comum. Neste caso, o direito à igualdade é liberdade de consciência são percebidos como direitos fundamentais a serem preservados. O Estado, nestas questões, se torna um administrador de conflitos não um agente homogeneizador.

– Colaboração secular: Apresenta modelos estatais que possuem “ laços privilegiados com grupos de pensamento (filosóficos ou religiosos) em determinadas áreas”, explica Élisabeth. Neste caso, todos os grupos religiosos não são tratados de igual modo.

Isto vale até mesmo para aqueles que se fundamentam na crença de que Deus não existe ou não é relevante para as questões públicas,  tal crença é, em última instância, indistinguível de uma crença religiosa. Neste sentido, a tentativa de reprimir a espiritualidade humana à esfera privada, além de impossível, constitui de fato uma tirania. Para Peter Berger, um famoso sociólogo alemão:

É suficiente dizer que uma das características do projeto totalitário é sempre a insistência em tornar clandestina a propensão metafísica do homem, em banir a transcendência do âmbito público (exceto na forma domesticada da religião civil estabelecida) e tornar toda a vida social sujeita à mundividência trivial da racionalidade funcional.(BERGER, 1996)

 

Conclusão

É a partir desta conjuntura, portanto, que devemos considerar o que podemos chamar de identidade religiosa, que podemos compreender como um conjunto de características pessoais, compostas por crenças religiosas, que possibilitam uma identificação de ações (físicas e mentais) comuns entre um grupo de pessoas, gerando senso de pertença, solidariedade e estrutura de plausibilidade.(BERGER, 1985)

A formação desta identidade envolve o que Berger chama de processo dialético fundamental da sociedade, em que momentos interiorização, exteriorização e objetivação estão presentes. Cientes de que não é possível, nem honesto, suprimir a espiritualidade interna nem sua manifestação na esfera pública, é mister o desenvolvimento de uma cidadania religiosa responsável para que haja uma verdadeira democracia que afirme nossa constituição nacional, onde lê-se no capítulo I, artigo 5o e seguintes parágrafos:

– ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

– é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (SENADO, 2005, p. 5).

Além disso, uma apresentação mais clara e fidedigna à noção de pluralismo confessional, no entanto, é encontrada no artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular (DUDH, 1948, p. 10).

Para que isso seja possível, é necessário o reconhecimento de um pluralismo tanto societal, ou seja, estrutural, quanto confessional, em que todas as manifestações religiosas tenham direitos iguais perante o Estado e a sociedade. Lembrando mais uma vez Abraham Kuyper, nós que somos cristãos não precisamos temer esta liberdade confessional, pois se estivermos de fato dispostos a viver o cristianismo fora das paredes dos nossos templos e incluindo nossa capacidade intelectual, diga-se de passagem dada, pelo próprio Deus, a superioridade do cristianismo tornar-se-á visível e inegável.

Mas… Estado não é laico? Diriam eles. Depende, podemos responder, do que compreendermos por laicidade e espiritualidade!

Finalizo com as sábias e desafiadoras palavras de Paulo:

Não importa o que aconteça, exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo, para que assim, quer eu vá e os veja, quer apenas ouça a seu respeito em minha ausência, fique eu sabendo que vocês permanecem firmes num só espírito, lutando unânimes pela fé evangélica, sem de forma alguma deixar-se intimidar por aqueles que se opõem a vocês (NVI-PT) – Filipenses 1:27-28

 

 

Referências Bibliográficas

BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulinas, 1985.

BERGER, P. L. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

DE SOUSA SANTOS, B. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014.

DUDH. A Declaração Universal dos Direitos Humanos | Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/>. Acesso em: 29 mar. 2015.

GARANT, É. Différents modèles de laïcité. Reli-Femmes, v. 4, n. 79, 2013.

KUYPER, A. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

SENADO. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2005.

WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1974.

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